quinta-feira, 28 de maio de 2009

A falar sobre o telhado


E sob o telhado e por certo, carcomidas pelo tempo, lá estão as cartas.

E o passado, passando pastoso por entre as telhas, guarda o sótão que soterra meus pretéritos.

Cartas aludindo tudo que fiz e relatos iludindo tudo que almejei.

Esconderijo próximo às nuvens - melhor caminho não há, pois para lá; somente de asas, ou nos ventos da imaginação. Lá, outros poucos ousariam além de mim.

Nuvens que passam, acima de si, não permeiam liqüefações precisas, aponto de permear-lhe devidamente e corroer os meus segredos empapelados.

Lá, encasteladas em si, as minhas cartas se largam, e sob as telhas ficam; e assim, inatingíveis, perpetuar-se-ão ao tempo - que também lá a frente será passado.

Tudo que é depositado de mim,

fica depois postado

sob o telhado.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Uma flor, para Catavento catar

Quando flores não cabem no papel, são arrancadas e lançadas ao vento.
Não lamento que o sentimento seja tão perene quando tudo murcha, pois tudo passa sobre a terra, menos o que registramos em nossos corações.
Aniversariar é lançar flores de dentro de si. É abrir-se quando o renovo se instala.
Oxalá nossos corações sejam sementes que tragam ao mundo, sem medo, novos amanheceres.

sábado, 16 de maio de 2009

Para Cata vento catas

Caríssimo nobre amigo!

Cercado de minhas plantas, aqui no meu pequeno jardim, aquele que tu sabes bem, carrego sempre comigo; a lembrar-me dos dias em que tu, ainda bem jovem, andavas inquieto e absorto na biblioteca de minha casa.

Teus olhos rasgavam ferozes as lombadas e as capas, num inquieto ato que queria engolir o universo; e assim, deglutir e regurgitar algo de si. Assim sendo, tu destes às vozes que trazes dentro de ti a construção dos teus próprios alicerces e castelos - não de areia e pedra; mas sustentados por poderosas nuvens de um inexistir profundo, que materializam-se aos poucos, para que subsistam por si mesmos.Nunca tivemos, tu bem sabes, aquela incestuosa relação de mestre-aluno, pois temos em vista bem clara, que ainda muito falta para que aprendamos juntos. Assim, meus velhos cadernos de caligrafia, de fotos, de recortes, de desenho, de anotações de viagem e de jogos; eram sorvidos por ti de uma forma sem censura, como quem entende bem da existência de fantasias. E os meus molesquinos ficavam ali, expostos, sem o risco de serem molestados ante a ta voraz fome muda de mundo.

Mais um aniversário teu se avizinha nobre amigo, e se afasta de mim o discernimento para o teu presente. Buscarei nos meus molesquinos, anotações que me indiquem o que pode ser interessante para um jovem aluno como tu. Algo que caiba aspas, ou que caiba entre aspas...

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Uma escrita para teus ouvidos...



Catavento escuta, pois escrevo para os teus ouvidos: tu sabes melhor do que eu, que meus delírios advém das nuvens nas quais me escondo desde a absorta aura de meus dias. Dificultoso fica, portanto, aportar aqui meus apontamentos referentes à nossas histórias. Tu bem sabes, ainda, o quão trabalhoso é expor ao (virtual), questões tão caras para mim.

Sabemos que apesar de passar muitos tempos, lá em cima, acima das nuvens; prescruto-te de lá, sempre cuidadoso com teus afazeres e suas demandas. Não (é claro!), tu também, bem sabes, que esteja acima ou além de ti; mas minha cabeça anda acima das nuvens, estando os pés sobre elas, ou mesmo, aqui em terra firme.

Esta propriedade que possuo - dom extraordinário para os ordinários, de pôr-me à troposfera, tornando-me um singular e aliterante alienado alado.

As asas que porto (à cabeça) e nos pés são o diálogo entre a psicologia e a astrologia, que traçam o micro ao macro, que dão amplitude ao que é ínfimo - particular, o que me alça para além, quando nem saio de mim. Este comportamento próximo de Mercúrio, das instabilidades e oscilações, interpelam-se ao de Saturno, que tende ao melancólico, solitário e contemplativo, no qual me encontro na maior parte das vezes. Os antigos já nos ensinaram, que o temperamento de saturnino é próprio dos artistas, dos poetas, dos pensadores, e essa caracterização me parece correta. Lembro bem, do que me disse o saudoso Ítalo Calvino: "é certo que a literatura jamais teria existido se uma boa parte dos seres humanos não fosse inclinada a uma forte introversão, a um descontentamento com o mundo tal com ele é, a um esquecer-se das horas e dos dias fixando o olhar sobre a imobilidade das palavras mudas. Meu caráter apresenta sem dúvida os traços tradicionais da categoria a que pertenço: sempre permaneci um saturnino, por mais diversas que fossem as máscaras que procurasse usar."

(Mercúrio e Apolo, de Francesco Albani)

Assim somos nós Catavento, saturninos, que sonham ser mercuriais e tudo que vivemos e escrevemos se ressente dessas aspirações. Atribuo-o, contudo, este aspecto saturnino, que tanto me move para além e é bem próprio aos artistas e poetas como nós. Daí ser tão circunspecto e introvertido, tão vertido em sibilantes nuvens.

Olha Catavento! Vede como me arrebato tão grandiloqüente em meus pensamentos, como quando passamos horas e horas em vastas conversas sem fim. Mas também sigo, assim, bandido de mim mesmo, a subtrair-me os tempos que deveria passar mais contigo. A assim, eis-me aqui caro amigo; estou contigo por onde tu queiras catar os ventos que nos alçarão vôos catapultais!

Apresentam-se as coordenadas aos poucos de nossos próximos passos; pois cada vez que decolo contigo, nos balões de tua/nossa imaginação, somos sugados por redemoinhos.

Que moinhos nos movam! Que alcemos vôos maiores!

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Para um prólogo, chamo das nuvens: Ítalo Calvino


"A primeira coisa que me vem à mente na idealização de um conto é, pois, uma imagem que por uma razão qualquer apresenta-se a mim carregada de significado, mesmo que eu não o saiba formular em termos discursivos ou conceituais. A partir do momento em que a imagem adquire uma certa nitidez em minha mente, ponho-me a desenvolvê-la numa história, ou melhor, são as próprias imagens que desenvolvem suas potencialidades implícitas, o conto que trazem dentro de si. Em torno de cada imagem escondem-se outras, forma-se um campo de analogias, simetrias e contraposições. Na organização desse material, que não é apenas visivo mas igualmente conceitual, chega o momento em que intervém minha intenção de ordenar e dar um sentido ao desenrolar da história - ou, antes, o que faço é procurar estabelecer os significados que podem ser compatíveis ou não com o desígnio geral que gostaria de dar à história, sempre deixando certa margem de alternativas possíveis. Ao mesmo tempo, a escrita, a tradução em palavras, adquire cada vez mais importância; direi que a partir do momento em que começo a pôr o preto no branco, é a palavra escrita que conta: à busca de um equivalente da imagem visual se sucede o desenvolvimento coerente da impostação estilística inicial, até que pouco a pouco a escrita se torna a dona do campo. Ela é que irá guiar a narrativa a direção em que a expressão verbal flui com mais felicidade, não restando à imaginação visual senão seguir atrás."

(Seis propostas para um novo milênio - Visibilidade, de Ítalo Calvino)